A necessária e urgente mudança na abordagem das pessoas em sofrimento pelo uso de drogas / The necessary and urgent changing in the approach toward people in suffering by drug use

Detalhes bibliográficos
Autor(a) principal: Gallassi, Andrea Donatti
Data de Publicação: 2014
Outros Autores: dos Santos, Vagner
Tipo de documento: Artigo
Idioma: por
Título da fonte: Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional
Texto Completo: https://www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.br/index.php/cadernos/article/view/1049
Resumo: O processo da reforma psiquiátrica brasileira trouxe no bojo de sua discussão a revisão dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde mental, antes focados na figura do hospital psiquiátrico e nas práticas de isolamento e reclusão de pessoas em sofrimento psíquico, por ações de cuidado de base territorial e comunitária, promovendo uma organização em rede e não apenas em um serviço ou equipamento. A construção dessa nova forma de abordagem do sofrimento mental teve por objetivo fazer face à complexidade das demandas de inclusão de pessoas secularmente estigmatizadas, com seus direitos humanos violados e à superação da violência asilar em um país de acentuadas desigualdades sociais como é o caso do Brasil.Ao longo desse processo de revisão da exclusão, do isolamento e da violência como formas de abordagemdaqueles que sofrem por transtornos mentais, parece não terem sido devidamente incluídos no debate aqueles em sofrimento pelo uso de álcool e outras drogas, que se mantiveram à margem da discussão das políticas de saúde mental. Como consequência, suas demandas e necessidades acabaram por não ser propriamente incorporadas no âmbito da reforma psiquiátrica, deixando ser entendidas como questão, majoritariamente, de segurança pública e de justiça, o que perdura e tem efeitos até os dias de hoje.Esse cenário de exclusão histórica e tímidas ações no âmbito da saúde e do social fez com que o tema drogas e suas vulnerabilidades associadas passassem a constituir demanda de segurança pública e, portanto, passível do uso da força policial e da repressão como mecanismos de abordagem e controle; e quando tenta-se abordar o tema sob a perspectiva da saúde e da prevenção, muito frequentemente utiliza-se da “pedagogia do terror” para tratar do assunto, o que comprovadamente, além de não apresentar a efetividade desejada, afasta e dificulta o acesso das pessoas em sofrimento a reais possibilidades de ajuda. No esforço de recuperar o atraso histórico na abordagem do tema, mas principalmente com o objetivode dar respostas a uma classe média incomodada com a questão, o governo federal lançou em 2012 o programa Crack, é possível vencer (BRASIL, 2012), que tem como um de seus objetivos expandir a rede de atenção psicossocial para usuários de álcool e outras drogas. Embora bastante criticado pelo fato de ser um programa de governo focado em apenas uma droga – o crack –, a expansão da rede de cuidados beneficia todos que dela necessitam e não somente aquele com problemas relacionados ao uso dessa ou daquela substância.Porém a expansão da rede de atenção prevista no programa Crack, É Possível Vencer não se restringiuàquela da abordagem psicossocial, composta por equipamentos de base territorial e comunitária, um dos pressupostos da reforma psiquiátrica, a expansão também se deu na modalidade de intervenção que reproduz o modelo combatido de instituição total, como o que ocorre nas comunidades terapêuticas, no qual se centraliza o tratamento em espaços fechados de internação, sem articulação com outros serviços e tendo a abstinência como meta única.Nesse sentido, é possível considerar que enfrentamos no Brasil, atualmente, pelo menos dois grandes desafios relacionados ao tema drogas: o recrudescimento das abordagens terapêuticas centradas na internação, reclusão e exclusão dos usuários de drogas; e a falta de conhecimento técnico-científico dos profissionais, à luz das melhores evidências no que se refere ao cuidado de pessoas em sofrimento pelo uso de drogas.No âmbito da Terapia Ocupacional, esses desafios estão postos da mesma forma. Os estruturais também estão reconhecidos como dimensão válida e necessária da ação profissional, que nos exige desenvolver capacidades para participar, mudar e influenciar nos processos políticos e institucionais (POLLARD; SAKELLARIOU; KRONENBERG, 2008).Adicionalmente, enfrentamos os desafios conceituais que orientam a prática, nossas concepções de saúde, de “normal”, de ocupação, dentre outras. Por exemplo, questiona-se o fato de considerar ou não o uso de drogas como uma ocupação humana (KIEPEK; MAGALHÃES, 2011), uma vez que tratar-se-ia de uma ocupação não saudável, em alguns contextos, confrontando, de certa forma, o entendimento de ocupação como algo que compõe o rol de atividades do ser humano e, portanto, aquilo que produz vida e funcionalidade. Por outro lado, considerando o conceito de ocupação como qualquer coisa em que as pessoas se ocupam (CANADIAN..., 2008), o uso de drogas pode ser sim categorizado como ocupação e, portanto, necessário de ser compreendido à partir do contexto de onde ocorre e de quem a executa.A intervenção do terapeuta ocupacional e de outros profissionais junto a usuários de drogas, muitas vezes, reproduz o que as políticas de massa insistem em propagar, que é ter a abstinência total como única possibilidade a ser atingida pelo tratamento, procurando fazer com que a droga desapareça do discurso e da vida de seus usuários. Sendo o cotidiano e o contexto recursos do terapeuta ocupacional e sendo ambos parte inerente do cenário de uso de drogas, a abordagem desses sujeitos deverá, inexoravelmente, considerar a droga como parte integrante do processo de cuidado e intervenção, tanto presente no discurso quanto no próprio uso. A compreensão do uso de drogas como parte do fazer desses sujeitos é o que possibilitará aproximar-se deles para ofertar cuidado, compreendendo o paradoxo, vivenciado por muitos, do desejo de interromper o uso ao mesmo tempo em que deseja fortemente usar a substância (SANTOS; SILVA, 2013).Nesse contexto de reinvindicação da condição cidadã e autônoma, a Terapia Ocupacional, seja social ou da saúde, apresenta-se no sentido de discutir, propor e ampliar o repertório de intervenções no território, buscando estabelecer vínculos ao longo do processo por meio de trabalho em equipe e, quando possível, interdisciplinar (MALFITANO; BIANCHI, 2013). Os desafios na vida social, psíquica e produtiva podem ser considerados como o grande foco de atuação da Terapia Ocupacional com pessoas em sofrimento pelo uso de drogas, uma vez que por meio da busca de possibilidades para a realização de atividadessignificativas se oportunizam a retomada de vivências abandonadas em função do uso como também novas descobertas e experimentações.O conhecimento técnico-científico sobre o tema, tanto no que se refere ao modelo de tratamento e intervenção quanto à formação do profissional, somado a uma postura acolhedora, guiada pelos princípios dos direitos humanos e da cidadania, são elementos que possibilitarão uma efetiva mudança na forma de compreender e abordar o tema drogas, sabidamente diverso, complexo e multifatorial (GALLASSI; SANTOS, 2013).Com isso esperamos que esta edição especial oportunize aos leitores uma vivência intensa sobre as diferentes formas e possibilidades de considerar o sofrimento pelo uso de drogas, tendo como perspectiva o abandono da supremacia da abstinência e das formas autoritárias, morais e punitivas de intervenção em favor de abordagens que elevem a condição de sujeito merecedor de cuidados destituídos de valores morais e conceitos que firam seu direito cidadão a um tratamento digno, em liberdade e em consonânciacom seus anseios e desejos.
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Embora bastante criticado pelo fato de ser um programa de governo focado em apenas uma droga – o crack –, a expansão da rede de cuidados beneficia todos que dela necessitam e não somente aquele com problemas relacionados ao uso dessa ou daquela substância.Porém a expansão da rede de atenção prevista no programa Crack, É Possível Vencer não se restringiuàquela da abordagem psicossocial, composta por equipamentos de base territorial e comunitária, um dos pressupostos da reforma psiquiátrica, a expansão também se deu na modalidade de intervenção que reproduz o modelo combatido de instituição total, como o que ocorre nas comunidades terapêuticas, no qual se centraliza o tratamento em espaços fechados de internação, sem articulação com outros serviços e tendo a abstinência como meta única.Nesse sentido, é possível considerar que enfrentamos no Brasil, atualmente, pelo menos dois grandes desafios relacionados ao tema drogas: o recrudescimento das abordagens terapêuticas centradas na internação, reclusão e exclusão dos usuários de drogas; e a falta de conhecimento técnico-científico dos profissionais, à luz das melhores evidências no que se refere ao cuidado de pessoas em sofrimento pelo uso de drogas.No âmbito da Terapia Ocupacional, esses desafios estão postos da mesma forma. 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Os desafios na vida social, psíquica e produtiva podem ser considerados como o grande foco de atuação da Terapia Ocupacional com pessoas em sofrimento pelo uso de drogas, uma vez que por meio da busca de possibilidades para a realização de atividadessignificativas se oportunizam a retomada de vivências abandonadas em função do uso como também novas descobertas e experimentações.O conhecimento técnico-científico sobre o tema, tanto no que se refere ao modelo de tratamento e intervenção quanto à formação do profissional, somado a uma postura acolhedora, guiada pelos princípios dos direitos humanos e da cidadania, são elementos que possibilitarão uma efetiva mudança na forma de compreender e abordar o tema drogas, sabidamente diverso, complexo e multifatorial (GALLASSI; SANTOS, 2013).Com isso esperamos que esta edição especial oportunize aos leitores uma vivência intensa sobre as diferentes formas e possibilidades de considerar o sofrimento pelo uso de drogas, tendo como perspectiva o abandono da supremacia da abstinência e das formas autoritárias, morais e punitivas de intervenção em favor de abordagens que elevem a condição de sujeito merecedor de cuidados destituídos de valores morais e conceitos que firam seu direito cidadão a um tratamento digno, em liberdade e em consonânciacom seus anseios e desejos.Brazilian Journal of Occupational TherapyCuadernos Brasilenos de Terapia OcupacionalCadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional2014-08-19info:eu-repo/semantics/articleinfo:eu-repo/semantics/publishedVersionapplication/pdfhttps://www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.br/index.php/cadernos/article/view/104910.4322/cto.2014.024Brazilian Journal of Occupational Therapy; Vol. 22 No. 1SE (2014)Cuadernos Brasilenos de Terapia Ocupacional; Vol. 22 Núm. 1SE (2014)Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional; v. 22 n. 1SE (2014)2526-8910reponame:Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacionalinstname:Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR-DTO)instacron:UFSCARporhttps://www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.br/index.php/cadernos/article/view/1049/513Gallassi, Andrea Donattidos Santos, Vagnerinfo:eu-repo/semantics/openAccess2022-04-22T18:02:29Zoai:ojs.www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.br:article/1049Revistahttp://www.cadernosdeterapiaocupacional.ufscar.br/index.php/cadernos/indexPUBhttps://old.scielo.br/oai/scielo-oai.phpcadto@ufscar.br||cadto@ufscar.br2526-89102526-8910opendoar:2022-04-22T18:02:29Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional - Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR-DTO)false
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Os estruturais também estão reconhecidos como dimensão válida e necessária da ação profissional, que nos exige desenvolver capacidades para participar, mudar e influenciar nos processos políticos e institucionais (POLLARD; SAKELLARIOU; KRONENBERG, 2008).Adicionalmente, enfrentamos os desafios conceituais que orientam a prática, nossas concepções de saúde, de “normal”, de ocupação, dentre outras. Por exemplo, questiona-se o fato de considerar ou não o uso de drogas como uma ocupação humana (KIEPEK; MAGALHÃES, 2011), uma vez que tratar-se-ia de uma ocupação não saudável, em alguns contextos, confrontando, de certa forma, o entendimento de ocupação como algo que compõe o rol de atividades do ser humano e, portanto, aquilo que produz vida e funcionalidade. 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