The Law found on the street
Autor(a) principal: | |
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Data de Publicação: | 2019 |
Tipo de documento: | Artigo |
Idioma: | por |
Título da fonte: | Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (Online) |
Texto Completo: | http://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/article/view/55 |
Resumo: | O DIREITO ACHADO NA RUA: UMA CONQUISTA DO POVO The Law found on the streets: a people’s conquest Leonor Xavier Nhaca Munguambe[1] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, 268 p. A obra objeto desta resenha é o volume 2 da Coleção Direito Vivo, denominada “O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática”, elaborada sob a coordenação do professor da Faculdade de Direito e Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília (UnB), Dr. José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da Universidade de Brasília (2008-2012), diretor da Faculdade de Direito e coordenador do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP), além de membro da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em colaboração com diversos coautores, que dialogam e compartilham os temas que são abordados. De acordo com o coordenador da obra, a concepção de O Direito Achado na Rua originou-se de um movimento de intelectuais denominado Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), que teve como seu principal expoente o professor Roberto Lyra Junior, o qual traçou seus primeiros alicerces. Trata-se, segundo José Geraldo de Sousa Junior (2015, p. 89): de uma concepção de Direito que emerge transformadora dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática. Em sua primeira parte, o livro aborda o que foi o movimento Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), o qual tinha como objetivo primordial trazer novos conceitos e avanços intelectuais para o Direito, sem menosprezar os conhecimentos já adquiridos com as gerações pretéritas, que se oporia às resistências imobilistas e retrógadas tradicionais, além de expor a necessidade de se superar o colonialismo do saber, à margem da proposta fixista do jusnaturalismo. Os boletins elaborados pela Nair davam luz aos debates jurídicos sobre soluções apontadas para as opressões estatais, além de denunciarem violações de domesticação da população brasileira. Nesse contexto, situa-se a proposta de O Direito Achado na Rua, inicialmente como esboço de um projeto de intervenção jurídica atrelado à práxis social de movimentos apoiados pela Nair, formulado por Lyra Filho em 1986, que teve por objetivo inovar o tradicional ensino de Introdução ao Estudo do Direito e que, após sua morte, teve seu prosseguimento sob a orientação de José Geraldo de Sousa Junior. O livro apresenta a visão do Direito como enunciação da legítima organização social da liberdade, conceito concebido por Lyra Filho que se opunha ao positivismo que, por causa de seu dogmatismo, proíbe a contestação ou, ainda, a proposição de alternativas. Lyra Filho, segundo a obra, busca uma nova definição do Direito dentro do processo histórico-social. Para o professor, o Direito estaria escrito na história e, portanto, sujeito às transformações advindas com o tempo, não se tratando, dessa forma, de um conjunto de leis e costumes imutáveis, tampouco de restrições à liberdade. A legitimidade do Direito postulado por Lyra Filho viria do “aperfeiçoamento dos padrões de convivência”(LYRA FILHO, 1986, p. 307), sendo esse Direito organizado não por determinadas classes ou instituições, mas por toda a sociedade, o que conduziria à construção da liberdade, que é o principal pilar de O Direito Achado na Rua. Sob o ponto de vista epistemológico, O Direito Achado na Rua possui três fundamentos, a saber: a) determinação do espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos; b) definição da natureza jurídica do sujeito e elaboração da sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e c) enquadramento dos dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecimento de novas categorias jurídicas para que o Direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade. Quanto à dimensão orgânica e prática de O Direito Achado na Rua, importa transcrever o seguinte trecho da obra em análise: É desse modo que O Direito Achado na Rua apresenta-se como projeto que assume uma atitude não apenas crítica (epistemológica), mas engajada (orgânica), que compreende a universidade como seu local de origem, mas não exclusivo, constituindo-se enquanto ponto de partida para o desenvolvimento de uma nova práxis no Direito realizada na medida da interação e diálogo com os sujeitos coletivos de direitos, organizados comunitariamente, em sindicatos e movimentos sociais (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 89). O Direito Achado na Rua tem se consolidado como um movimento iniciado na academia universitária, o qual ganhou expressão a partir de seu envolvimento com segmentos organizados da sociedade na luta por seus direitos, o que, segundo Lyra Filho, possibilitou a “construção de uma cultura e concepção que reconhece e compreende o Direito a partir da sua emergência e afirmação no ambiente social, como enunciação de princípios de uma legítima organização social da liberdade”. A segunda parte da obra trata sobre o percurso e o desenvolvimento de O Direito Achado na Rua até chegar à sua fortuna crítica. Quanto ao desenvolvimento teórico, a obra destaca que a década de 1980 foi marcada pela crítica ao Direito estatal dogmático e demasiadamente positivado que era dominante no Brasil. Dentre as novas expressões epistemológicas que surgiram nessa época, destacam-se o Direito Alternativo que, entre outras coisas, questionava a aplicação neutra dos magistrados, e o Direito Insurgente, que tinha por objetivo a superação da ideologia burguesa da igualdade perante a lei. Tais expressões teóricas foram contemporâneas de O Direito Achado na Rua, que tinha por escopo a formação de uma nova ordem jurídica estatal que fosse mais justa e atenta aos direitos humanos, bem como aos segmentos marginalizados da sociedade. Sob a perspectiva do pluralismo político, não sendo a entidade estatal a única fonte do poder político e fonte do direito, O Direito Achado na Rua traz à tona a proposta da análise de novas manifestações normativas não estatais oriundas de movimentos populares organizados. Em relação às suas ideias de sustentação, O Direito Achado na Rua tem por pretensão inserir-se no âmbito da ciência jurídica antidogmática, além de visar à superação da separação entre a teoria e a prática, propondo um olhar para os espaços políticos cujas práticas sociais enunciam direitos, buscando o fim da neutralidade do Direito. Portanto, O Direito Achado na Rua vê o Direito como instrumento de transformação da realidade jurídica vigente, no sentido de atender à demanda de direitos da sociedade e, em especial, dos novos movimentos sociais. Realça o protagonismo da cidadania ativa, em substituição ao sujeito abstrato por novos sujeitos de direito (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 111). Importante destacar que, após mais de 25 anos, O Direito Achado na Rua produziu inúmeros frutos, dos quais podem ser destacados: a) a coleção “Introdução Crítica”, de repercussão internacional na temática da saúde; b) encontra-se presente na graduação e pós-graduação na Faculdade de Direito da UnB, além de influenciar outras instituições; c) por meio do Núcleo de Prática Jurídica da UnB, atuou na luta da comunidade pela fixação do acampamento da Telebrasília em 1990; d) foi referência na Rede de Defesa dos Direitos Humanos em Ceilândia, nos idos de 1997; e) esteve presente na coluna semanal do jornal Tribuna do Brasil (Brasília); além de inúmeros outros projetos. Há de se falar, também, que O Direito Achado na Rua não influenciou apenas estudantes e professores do Brasil, mas também de outros países, tendo, por exemplo, como um de seus mais festejados representantes na Europa, o professor português Boaventura de Sousa Santos. No que tange à produção crítica, O Direito Achado na Rua tem sido considerado por muitos renomados juristas e operadores do Direito como sendo “uma nova crítica do Direito” e “uma nova escola jurídica”, em processo de construção, que formula a construção teórica de “Sujeito Coletivo de Direito” e que nega ter o Estado o monopólio da produção jurídica. De outro lado, O Direito Achado na Rua tem recebido críticas quanto à imprecisão dos limites do pluralismo político, além do que não caberia ao cientista constituir o mundo da ciência em razão desta ser descritiva. Além disso, algumas delas são no sentido de rejeitar o caráter científico de O Direito Achado na Rua, considerando-o apenas como sendo uma construção poética. Em contrapartida, justifica-se a jurisdicidade de O Direito Achado na Rua, sob a fundamentação de que sua inspiração não toma contornos metafísicos, mas tem na vivência da pessoa, sujeito de direito, a efetiva aplicação de seus preceitos teóricos. No que concerne à crítica feita ao sujeito coletivo de direito, entende-se esse sujeito como mera expressão simbólica, pois para que se reconheça o sujeito coletivo como protagonista e destinatário de direitos o Estado exige sua formalização pela via institucional. No entanto, segundo o que defende José Geraldo de Sousa Junior (2015, p. 136) é que “pode haver um campo social que se una com expressões espontâneas de segmentos que não se vinculam a uma organicidade para reivindicar seus direitos” e o diálogo social seria a ferramenta adequada para dar legitimidade a esse sujeito coletivo. Todavia, é bem verdade que construir espaços alternativos à Constituição poderia gerar insegurança jurídica. Em contrapartida, como resposta, aponta-se que até mesmo os direitos expressos na Carta Magna de 1988 podem não ser cumpridos sem que haja protesto nas ruas, a exemplo da manifestação popular havida em 2013, na qual os brasileiros protestaram não apenas pela redução das tarifas e pela violência policial, mas também por uma grande variedade de temas, como os gastos públicos em grandes eventos esportivos e internacionais, além da má qualidade dos serviços públicos e a indignação com a corrupção na política em geral, o que gerou grande repercussão nacional e internacional. A terceira parte do livro aborda as exigências críticas para a pesquisa, a extensão e o ensino em Direito e Direitos Humanos, sob a ótica de O Direito Achado na Rua. Nesse ponto, defende-se a ideia da necessidade de uma reforma no ensino superior, a fim de que haja a formação prática dos acadêmicos para o uso instrumental do Direito como ferramenta transformadora da sociedade. A pesquisa, com aplicação da teoria dialética do Direito, tem por objetivo afastar-se de uma “ontologia furtiva”, anunciando sua “concepção do Direito como legítima organização social da liberdade, evidenciando as limitações do objeto, do sujeito e das análises possíveis” (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 160), como pesquisa-ação. As atividades de extensão, como extensão popular, devem ser abordadas sob o aspecto humanista. A sua importância traduz-se na medida em que possibilitam o desenvolvimento de um trabalho cooperativo e solidário, o que desencadeia o despertar dos estudantes de Direito para uma visão crítica do Direito e da realidade social. O ensino, por sua vez, deve ser permeado pelo contínuo desenvolvimento e construção jurídica, não se tratando, portanto, de algo estático. Logo, um ensino-crítico voltado para a realidade e para a emancipação. Não se pode esquecer que o modelo dogmático e conservador do ensino público do Direito ainda se mantém nos dias de hoje, sendo que seu problema não se limita apenas à forma equivocada de como é ensinado, mas também na errada concepção do Direito que se aprende. O livro irá discorrer, ainda, sobre como a prática jurídica, o ensino crítico e a extensão universitária têm o poder de romper com a cultura técnico-burocrática aproximando, dessa forma, os estudantes da sociedade, bem como são a forma contra-hegemônica de se promover o ensino jurídico. A obra também cita as experiências bem sucedidas da educação jurídico-popular e do assessoramento jurídico para com a sociedade como práticas extensionistas advindas do Direito Achado na Rua. A quarta parte do livro problematiza desafios, tarefas e perspectivas atuais de O Direito Achado na Rua. O pluralismo político tem sua importância para O Direito Achado na Rua, na medida em que tem seus olhares voltados para os subgrupos sociais, de modo a contemplar suas demandas não subsumidas ao legalismo do Direito posto. Para exemplificar, o texto cita algumas experiências havidas nos ordenamentos jurídicos de alguns países da América Latina que adotaram o pluralismo político, tornando-se, destarte, uma espécie de “Constitucionalismo Achado na Rua”. Um dos grandes desafios de O Direito Achado na Rua é pensar em um novo Constitucionalismo Brasileiro à luz das experiências obtidas na América Latina, com a finalidade de desenvolver a emancipação e o desenvolvimento dos novos sujeitos de direitos coletivos no Brasil. Quanto à descolonização do saber, o livro ensina que a “ditadura do conhecimento” dificulta outras formas de se obter o conhecimento jurídico e fortalece a hegemonia dogmática do Estado, bem como as tradições corporativas dominantes. Nesse sentido, a proposta é a de repensar uma nova forma de ensino, a fim de poder fazer chegar às categorias sociais esquecidas o conhecimento libertador. Isso pode ser verificado na prática, pela visualização dos resultados (ainda que parciais) de iniciativas tais como as quotas raciais nos cursos de graduação e pós-graduação implementadas nas universidades federais, a exemplo da UnB, com fins de se produzir nos acadêmicos novas formas de pensar o Direito. Quanto ao ensino, à pesquisa e à extensão, O Direito Achado na Rua defende que não há teoria consistente sem prática, mas apenas retórica, bem como a prática sem a teoria, que se torna cegueira pragmática. Os segmentos envolvidos da pesquisa científica não podem ser encarados meramente com sendo apenas seus objetos, mas sim protagonistas. Além disso, O Direito Achado na Rua tem como proposta novas e criativas possibilidades de construção de ensino e pesquisa que possibilitem uma aprendizagem recíproca com outros conhecimentos. Em relação aos desafios e perspectivas, indicam-se as seguintes: a) tensão entre os dois modelos de democracia; b) criminalização dos movimentos sociais; c) democratização da mídia; d) necessidade de desmilitarização da polícia; e) reforma das instituições públicas, mormente o Poder Judiciário; f) a reforma da Educação e das Cidades, todas voltadas para a educação participativa e de inclusão social; g) ressignificação dos espaços públicos e privados; h) incorporação de diferentes linguagens e saberes; e i) integração entre as pautas dos movimentos sociais com respeito às suas diferenças. A obra aponta, em síntese, a necessidade de se modificar a forma de se elaborar e praticar o Direito, conferindo-se mais atenção àquele conhecimento advindo das ruas, dos grupos sociais organizados ou não, o que produziria um Direito horizontal e mais democrático, que diminuiria as desigualdades derivadas do atual e engessado Direito posto hierarquizado. Verifica-se que, embora possa haver críticas, tem-se uma nova maneira de se elaborar o Direito, mais humanizada, com ênfase no social, que tem por objetivo não a manutenção dos privilégios de categorias dominantes, mas atender aos anseios dos menos favorecidos que clamam por seus direitos nas ruas e que, muitas vezes, são esquecidos pelo poder público. Por fim, observa-se que alguns resultados podem ser constatados quanto à viabilidade de O Direito Achado na Rua, o que se vislumbra, mormente, por meio dos projetos realizados pela Universidade de Brasília, demonstrando que é possível repensar a produção e realização do Direito no Brasil o que, além de ser bastante inovador, poderá ser uma forma de integrar os menos favorecidos e esquecidos grupos sociais ao acesso aos direitos e garantias estabelecidos constitucionalmente a todos. REFERÊNCIAS LYRA FILHO, Roberto. Desordem e processo: um posfácio explicativo. In: ARAÚJO, Doreodó Lyra. Desordem e processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Coordenador. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. [1] Mestranda em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Licenciada em Direito na Escola Superior de economia e Gestão em Moçambique-Maputo (ESEG). |
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De acordo com o coordenador da obra, a concepção de O Direito Achado na Rua originou-se de um movimento de intelectuais denominado Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), que teve como seu principal expoente o professor Roberto Lyra Junior, o qual traçou seus primeiros alicerces. Trata-se, segundo José Geraldo de Sousa Junior (2015, p. 89): de uma concepção de Direito que emerge transformadora dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática. Em sua primeira parte, o livro aborda o que foi o movimento Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), o qual tinha como objetivo primordial trazer novos conceitos e avanços intelectuais para o Direito, sem menosprezar os conhecimentos já adquiridos com as gerações pretéritas, que se oporia às resistências imobilistas e retrógadas tradicionais, além de expor a necessidade de se superar o colonialismo do saber, à margem da proposta fixista do jusnaturalismo. Os boletins elaborados pela Nair davam luz aos debates jurídicos sobre soluções apontadas para as opressões estatais, além de denunciarem violações de domesticação da população brasileira. Nesse contexto, situa-se a proposta de O Direito Achado na Rua, inicialmente como esboço de um projeto de intervenção jurídica atrelado à práxis social de movimentos apoiados pela Nair, formulado por Lyra Filho em 1986, que teve por objetivo inovar o tradicional ensino de Introdução ao Estudo do Direito e que, após sua morte, teve seu prosseguimento sob a orientação de José Geraldo de Sousa Junior. O livro apresenta a visão do Direito como enunciação da legítima organização social da liberdade, conceito concebido por Lyra Filho que se opunha ao positivismo que, por causa de seu dogmatismo, proíbe a contestação ou, ainda, a proposição de alternativas. Lyra Filho, segundo a obra, busca uma nova definição do Direito dentro do processo histórico-social. Para o professor, o Direito estaria escrito na história e, portanto, sujeito às transformações advindas com o tempo, não se tratando, dessa forma, de um conjunto de leis e costumes imutáveis, tampouco de restrições à liberdade. A legitimidade do Direito postulado por Lyra Filho viria do “aperfeiçoamento dos padrões de convivência”(LYRA FILHO, 1986, p. 307), sendo esse Direito organizado não por determinadas classes ou instituições, mas por toda a sociedade, o que conduziria à construção da liberdade, que é o principal pilar de O Direito Achado na Rua. Sob o ponto de vista epistemológico, O Direito Achado na Rua possui três fundamentos, a saber: a) determinação do espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos; b) definição da natureza jurídica do sujeito e elaboração da sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e c) enquadramento dos dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecimento de novas categorias jurídicas para que o Direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade. Quanto à dimensão orgânica e prática de O Direito Achado na Rua, importa transcrever o seguinte trecho da obra em análise: É desse modo que O Direito Achado na Rua apresenta-se como projeto que assume uma atitude não apenas crítica (epistemológica), mas engajada (orgânica), que compreende a universidade como seu local de origem, mas não exclusivo, constituindo-se enquanto ponto de partida para o desenvolvimento de uma nova práxis no Direito realizada na medida da interação e diálogo com os sujeitos coletivos de direitos, organizados comunitariamente, em sindicatos e movimentos sociais (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 89). O Direito Achado na Rua tem se consolidado como um movimento iniciado na academia universitária, o qual ganhou expressão a partir de seu envolvimento com segmentos organizados da sociedade na luta por seus direitos, o que, segundo Lyra Filho, possibilitou a “construção de uma cultura e concepção que reconhece e compreende o Direito a partir da sua emergência e afirmação no ambiente social, como enunciação de princípios de uma legítima organização social da liberdade”. A segunda parte da obra trata sobre o percurso e o desenvolvimento de O Direito Achado na Rua até chegar à sua fortuna crítica. Quanto ao desenvolvimento teórico, a obra destaca que a década de 1980 foi marcada pela crítica ao Direito estatal dogmático e demasiadamente positivado que era dominante no Brasil. Dentre as novas expressões epistemológicas que surgiram nessa época, destacam-se o Direito Alternativo que, entre outras coisas, questionava a aplicação neutra dos magistrados, e o Direito Insurgente, que tinha por objetivo a superação da ideologia burguesa da igualdade perante a lei. Tais expressões teóricas foram contemporâneas de O Direito Achado na Rua, que tinha por escopo a formação de uma nova ordem jurídica estatal que fosse mais justa e atenta aos direitos humanos, bem como aos segmentos marginalizados da sociedade. Sob a perspectiva do pluralismo político, não sendo a entidade estatal a única fonte do poder político e fonte do direito, O Direito Achado na Rua traz à tona a proposta da análise de novas manifestações normativas não estatais oriundas de movimentos populares organizados. Em relação às suas ideias de sustentação, O Direito Achado na Rua tem por pretensão inserir-se no âmbito da ciência jurídica antidogmática, além de visar à superação da separação entre a teoria e a prática, propondo um olhar para os espaços políticos cujas práticas sociais enunciam direitos, buscando o fim da neutralidade do Direito. Portanto, O Direito Achado na Rua vê o Direito como instrumento de transformação da realidade jurídica vigente, no sentido de atender à demanda de direitos da sociedade e, em especial, dos novos movimentos sociais. Realça o protagonismo da cidadania ativa, em substituição ao sujeito abstrato por novos sujeitos de direito (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 111). Importante destacar que, após mais de 25 anos, O Direito Achado na Rua produziu inúmeros frutos, dos quais podem ser destacados: a) a coleção “Introdução Crítica”, de repercussão internacional na temática da saúde; b) encontra-se presente na graduação e pós-graduação na Faculdade de Direito da UnB, além de influenciar outras instituições; c) por meio do Núcleo de Prática Jurídica da UnB, atuou na luta da comunidade pela fixação do acampamento da Telebrasília em 1990; d) foi referência na Rede de Defesa dos Direitos Humanos em Ceilândia, nos idos de 1997; e) esteve presente na coluna semanal do jornal Tribuna do Brasil (Brasília); além de inúmeros outros projetos. Há de se falar, também, que O Direito Achado na Rua não influenciou apenas estudantes e professores do Brasil, mas também de outros países, tendo, por exemplo, como um de seus mais festejados representantes na Europa, o professor português Boaventura de Sousa Santos. No que tange à produção crítica, O Direito Achado na Rua tem sido considerado por muitos renomados juristas e operadores do Direito como sendo “uma nova crítica do Direito” e “uma nova escola jurídica”, em processo de construção, que formula a construção teórica de “Sujeito Coletivo de Direito” e que nega ter o Estado o monopólio da produção jurídica. De outro lado, O Direito Achado na Rua tem recebido críticas quanto à imprecisão dos limites do pluralismo político, além do que não caberia ao cientista constituir o mundo da ciência em razão desta ser descritiva. Além disso, algumas delas são no sentido de rejeitar o caráter científico de O Direito Achado na Rua, considerando-o apenas como sendo uma construção poética. Em contrapartida, justifica-se a jurisdicidade de O Direito Achado na Rua, sob a fundamentação de que sua inspiração não toma contornos metafísicos, mas tem na vivência da pessoa, sujeito de direito, a efetiva aplicação de seus preceitos teóricos. No que concerne à crítica feita ao sujeito coletivo de direito, entende-se esse sujeito como mera expressão simbólica, pois para que se reconheça o sujeito coletivo como protagonista e destinatário de direitos o Estado exige sua formalização pela via institucional. No entanto, segundo o que defende José Geraldo de Sousa Junior (2015, p. 136) é que “pode haver um campo social que se una com expressões espontâneas de segmentos que não se vinculam a uma organicidade para reivindicar seus direitos” e o diálogo social seria a ferramenta adequada para dar legitimidade a esse sujeito coletivo. Todavia, é bem verdade que construir espaços alternativos à Constituição poderia gerar insegurança jurídica. Em contrapartida, como resposta, aponta-se que até mesmo os direitos expressos na Carta Magna de 1988 podem não ser cumpridos sem que haja protesto nas ruas, a exemplo da manifestação popular havida em 2013, na qual os brasileiros protestaram não apenas pela redução das tarifas e pela violência policial, mas também por uma grande variedade de temas, como os gastos públicos em grandes eventos esportivos e internacionais, além da má qualidade dos serviços públicos e a indignação com a corrupção na política em geral, o que gerou grande repercussão nacional e internacional. A terceira parte do livro aborda as exigências críticas para a pesquisa, a extensão e o ensino em Direito e Direitos Humanos, sob a ótica de O Direito Achado na Rua. Nesse ponto, defende-se a ideia da necessidade de uma reforma no ensino superior, a fim de que haja a formação prática dos acadêmicos para o uso instrumental do Direito como ferramenta transformadora da sociedade. 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Nesse sentido, a proposta é a de repensar uma nova forma de ensino, a fim de poder fazer chegar às categorias sociais esquecidas o conhecimento libertador. Isso pode ser verificado na prática, pela visualização dos resultados (ainda que parciais) de iniciativas tais como as quotas raciais nos cursos de graduação e pós-graduação implementadas nas universidades federais, a exemplo da UnB, com fins de se produzir nos acadêmicos novas formas de pensar o Direito. Quanto ao ensino, à pesquisa e à extensão, O Direito Achado na Rua defende que não há teoria consistente sem prática, mas apenas retórica, bem como a prática sem a teoria, que se torna cegueira pragmática. Os segmentos envolvidos da pesquisa científica não podem ser encarados meramente com sendo apenas seus objetos, mas sim protagonistas. Além disso, O Direito Achado na Rua tem como proposta novas e criativas possibilidades de construção de ensino e pesquisa que possibilitem uma aprendizagem recíproca com outros conhecimentos. Em relação aos desafios e perspectivas, indicam-se as seguintes: a) tensão entre os dois modelos de democracia; b) criminalização dos movimentos sociais; c) democratização da mídia; d) necessidade de desmilitarização da polícia; e) reforma das instituições públicas, mormente o Poder Judiciário; f) a reforma da Educação e das Cidades, todas voltadas para a educação participativa e de inclusão social; g) ressignificação dos espaços públicos e privados; h) incorporação de diferentes linguagens e saberes; e i) integração entre as pautas dos movimentos sociais com respeito às suas diferenças. A obra aponta, em síntese, a necessidade de se modificar a forma de se elaborar e praticar o Direito, conferindo-se mais atenção àquele conhecimento advindo das ruas, dos grupos sociais organizados ou não, o que produziria um Direito horizontal e mais democrático, que diminuiria as desigualdades derivadas do atual e engessado Direito posto hierarquizado. Verifica-se que, embora possa haver críticas, tem-se uma nova maneira de se elaborar o Direito, mais humanizada, com ênfase no social, que tem por objetivo não a manutenção dos privilégios de categorias dominantes, mas atender aos anseios dos menos favorecidos que clamam por seus direitos nas ruas e que, muitas vezes, são esquecidos pelo poder público. Por fim, observa-se que alguns resultados podem ser constatados quanto à viabilidade de O Direito Achado na Rua, o que se vislumbra, mormente, por meio dos projetos realizados pela Universidade de Brasília, demonstrando que é possível repensar a produção e realização do Direito no Brasil o que, além de ser bastante inovador, poderá ser uma forma de integrar os menos favorecidos e esquecidos grupos sociais ao acesso aos direitos e garantias estabelecidos constitucionalmente a todos. REFERÊNCIAS LYRA FILHO, Roberto. Desordem e processo: um posfácio explicativo. In: ARAÚJO, Doreodó Lyra. Desordem e processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Coordenador. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. [1] Mestranda em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Licenciada em Direito na Escola Superior de economia e Gestão em Moçambique-Maputo (ESEG).O DIREITO ACHADO NA RUA: UMA CONQUISTA DO POVO The Law found on the streets: a people’s conquest Leonor Xavier Nhaca Munguambe[1] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, 268 p. A obra objeto desta resenha é o volume 2 da Coleção Direito Vivo, denominada “O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática”, elaborada sob a coordenação do professor da Faculdade de Direito e Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília (UnB), Dr. José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da Universidade de Brasília (2008-2012), diretor da Faculdade de Direito e coordenador do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP), além de membro da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em colaboração com diversos coautores, que dialogam e compartilham os temas que são abordados. De acordo com o coordenador da obra, a concepção de O Direito Achado na Rua originou-se de um movimento de intelectuais denominado Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), que teve como seu principal expoente o professor Roberto Lyra Junior, o qual traçou seus primeiros alicerces. Trata-se, segundo José Geraldo de Sousa Junior (2015, p. 89): de uma concepção de Direito que emerge transformadora dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática. Em sua primeira parte, o livro aborda o que foi o movimento Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), o qual tinha como objetivo primordial trazer novos conceitos e avanços intelectuais para o Direito, sem menosprezar os conhecimentos já adquiridos com as gerações pretéritas, que se oporia às resistências imobilistas e retrógadas tradicionais, além de expor a necessidade de se superar o colonialismo do saber, à margem da proposta fixista do jusnaturalismo. Os boletins elaborados pela Nair davam luz aos debates jurídicos sobre soluções apontadas para as opressões estatais, além de denunciarem violações de domesticação da população brasileira. Nesse contexto, situa-se a proposta de O Direito Achado na Rua, inicialmente como esboço de um projeto de intervenção jurídica atrelado à práxis social de movimentos apoiados pela Nair, formulado por Lyra Filho em 1986, que teve por objetivo inovar o tradicional ensino de Introdução ao Estudo do Direito e que, após sua morte, teve seu prosseguimento sob a orientação de José Geraldo de Sousa Junior. O livro apresenta a visão do Direito como enunciação da legítima organização social da liberdade, conceito concebido por Lyra Filho que se opunha ao positivismo que, por causa de seu dogmatismo, proíbe a contestação ou, ainda, a proposição de alternativas. Lyra Filho, segundo a obra, busca uma nova definição do Direito dentro do processo histórico-social. Para o professor, o Direito estaria escrito na história e, portanto, sujeito às transformações advindas com o tempo, não se tratando, dessa forma, de um conjunto de leis e costumes imutáveis, tampouco de restrições à liberdade. A legitimidade do Direito postulado por Lyra Filho viria do “aperfeiçoamento dos padrões de convivência”(LYRA FILHO, 1986, p. 307), sendo esse Direito organizado não por determinadas classes ou instituições, mas por toda a sociedade, o que conduziria à construção da liberdade, que é o principal pilar de O Direito Achado na Rua. Sob o ponto de vista epistemológico, O Direito Achado na Rua possui três fundamentos, a saber: a) determinação do espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos; b) definição da natureza jurídica do sujeito e elaboração da sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e c) enquadramento dos dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecimento de novas categorias jurídicas para que o Direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade. Quanto à dimensão orgânica e prática de O Direito Achado na Rua, importa transcrever o seguinte trecho da obra em análise: É desse modo que O Direito Achado na Rua apresenta-se como projeto que assume uma atitude não apenas crítica (epistemológica), mas engajada (orgânica), que compreende a universidade como seu local de origem, mas não exclusivo, constituindo-se enquanto ponto de partida para o desenvolvimento de uma nova práxis no Direito realizada na medida da interação e diálogo com os sujeitos coletivos de direitos, organizados comunitariamente, em sindicatos e movimentos sociais (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 89). O Direito Achado na Rua tem se consolidado como um movimento iniciado na academia universitária, o qual ganhou expressão a partir de seu envolvimento com segmentos organizados da sociedade na luta por seus direitos, o que, segundo Lyra Filho, possibilitou a “construção de uma cultura e concepção que reconhece e compreende o Direito a partir da sua emergência e afirmação no ambiente social, como enunciação de princípios de uma legítima organização social da liberdade”. A segunda parte da obra trata sobre o percurso e o desenvolvimento de O Direito Achado na Rua até chegar à sua fortuna crítica. Quanto ao desenvolvimento teórico, a obra destaca que a década de 1980 foi marcada pela crítica ao Direito estatal dogmático e demasiadamente positivado que era dominante no Brasil. Dentre as novas expressões epistemológicas que surgiram nessa época, destacam-se o Direito Alternativo que, entre outras coisas, questionava a aplicação neutra dos magistrados, e o Direito Insurgente, que tinha por objetivo a superação da ideologia burguesa da igualdade perante a lei. Tais expressões teóricas foram contemporâneas de O Direito Achado na Rua, que tinha por escopo a formação de uma nova ordem jurídica estatal que fosse mais justa e atenta aos direitos humanos, bem como aos segmentos marginalizados da sociedade. Sob a perspectiva do pluralismo político, não sendo a entidade estatal a única fonte do poder político e fonte do direito, O Direito Achado na Rua traz à tona a proposta da análise de novas manifestações normativas não estatais oriundas de movimentos populares organizados. Em relação às suas ideias de sustentação, O Direito Achado na Rua tem por pretensão inserir-se no âmbito da ciência jurídica antidogmática, além de visar à superação da separação entre a teoria e a prática, propondo um olhar para os espaços políticos cujas práticas sociais enunciam direitos, buscando o fim da neutralidade do Direito. Portanto, O Direito Achado na Rua vê o Direito como instrumento de transformação da realidade jurídica vigente, no sentido de atender à demanda de direitos da sociedade e, em especial, dos novos movimentos sociais. Realça o protagonismo da cidadania ativa, em substituição ao sujeito abstrato por novos sujeitos de direito (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 111). Importante destacar que, após mais de 25 anos, O Direito Achado na Rua produziu inúmeros frutos, dos quais podem ser destacados: a) a coleção “Introdução Crítica”, de repercussão internacional na temática da saúde; b) encontra-se presente na graduação e pós-graduação na Faculdade de Direito da UnB, além de influenciar outras instituições; c) por meio do Núcleo de Prática Jurídica da UnB, atuou na luta da comunidade pela fixação do acampamento da Telebrasília em 1990; d) foi referência na Rede de Defesa dos Direitos Humanos em Ceilândia, nos idos de 1997; e) esteve presente na coluna semanal do jornal Tribuna do Brasil (Brasília); além de inúmeros outros projetos. Há de se falar, também, que O Direito Achado na Rua não influenciou apenas estudantes e professores do Brasil, mas também de outros países, tendo, por exemplo, como um de seus mais festejados representantes na Europa, o professor português Boaventura de Sousa Santos. No que tange à produção crítica, O Direito Achado na Rua tem sido considerado por muitos renomados juristas e operadores do Direito como sendo “uma nova crítica do Direito” e “uma nova escola jurídica”, em processo de construção, que formula a construção teórica de “Sujeito Coletivo de Direito” e que nega ter o Estado o monopólio da produção jurídica. De outro lado, O Direito Achado na Rua tem recebido críticas quanto à imprecisão dos limites do pluralismo político, além do que não caberia ao cientista constituir o mundo da ciência em razão desta ser descritiva. Além disso, algumas delas são no sentido de rejeitar o caráter científico de O Direito Achado na Rua, considerando-o apenas como sendo uma construção poética. Em contrapartida, justifica-se a jurisdicidade de O Direito Achado na Rua, sob a fundamentação de que sua inspiração não toma contornos metafísicos, mas tem na vivência da pessoa, sujeito de direito, a efetiva aplicação de seus preceitos teóricos. No que concerne à crítica feita ao sujeito coletivo de direito, entende-se esse sujeito como mera expressão simbólica, pois para que se reconheça o sujeito coletivo como protagonista e destinatário de direitos o Estado exige sua formalização pela via institucional. No entanto, segundo o que defende José Geraldo de Sousa Junior (2015, p. 136) é que “pode haver um campo social que se una com expressões espontâneas de segmentos que não se vinculam a uma organicidade para reivindicar seus direitos” e o diálogo social seria a ferramenta adequada para dar legitimidade a esse sujeito coletivo. Todavia, é bem verdade que construir espaços alternativos à Constituição poderia gerar insegurança jurídica. Em contrapartida, como resposta, aponta-se que até mesmo os direitos expressos na Carta Magna de 1988 podem não ser cumpridos sem que haja protesto nas ruas, a exemplo da manifestação popular havida em 2013, na qual os brasileiros protestaram não apenas pela redução das tarifas e pela violência policial, mas também por uma grande variedade de temas, como os gastos públicos em grandes eventos esportivos e internacionais, além da má qualidade dos serviços públicos e a indignação com a corrupção na política em geral, o que gerou grande repercussão nacional e internacional. A terceira parte do livro aborda as exigências críticas para a pesquisa, a extensão e o ensino em Direito e Direitos Humanos, sob a ótica de O Direito Achado na Rua. Nesse ponto, defende-se a ideia da necessidade de uma reforma no ensino superior, a fim de que haja a formação prática dos acadêmicos para o uso instrumental do Direito como ferramenta transformadora da sociedade. A pesquisa, com aplicação da teoria dialética do Direito, tem por objetivo afastar-se de uma “ontologia furtiva”, anunciando sua “concepção do Direito como legítima organização social da liberdade, evidenciando as limitações do objeto, do sujeito e das análises possíveis” (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 160), como pesquisa-ação. As atividades de extensão, como extensão popular, devem ser abordadas sob o aspecto humanista. A sua importância traduz-se na medida em que possibilitam o desenvolvimento de um trabalho cooperativo e solidário, o que desencadeia o despertar dos estudantes de Direito para uma visão crítica do Direito e da realidade social. O ensino, por sua vez, deve ser permeado pelo contínuo desenvolvimento e construção jurídica, não se tratando, portanto, de algo estático. Logo, um ensino-crítico voltado para a realidade e para a emancipação. Não se pode esquecer que o modelo dogmático e conservador do ensino público do Direito ainda se mantém nos dias de hoje, sendo que seu problema não se limita apenas à forma equivocada de como é ensinado, mas também na errada concepção do Direito que se aprende. O livro irá discorrer, ainda, sobre como a prática jurídica, o ensino crítico e a extensão universitária têm o poder de romper com a cultura técnico-burocrática aproximando, dessa forma, os estudantes da sociedade, bem como são a forma contra-hegemônica de se promover o ensino jurídico. A obra também cita as experiências bem sucedidas da educação jurídico-popular e do assessoramento jurídico para com a sociedade como práticas extensionistas advindas do Direito Achado na Rua. A quarta parte do livro problematiza desafios, tarefas e perspectivas atuais de O Direito Achado na Rua. O pluralismo político tem sua importância para O Direito Achado na Rua, na medida em que tem seus olhares voltados para os subgrupos sociais, de modo a contemplar suas demandas não subsumidas ao legalismo do Direito posto. Para exemplificar, o texto cita algumas experiências havidas nos ordenamentos jurídicos de alguns países da América Latina que adotaram o pluralismo político, tornando-se, destarte, uma espécie de “Constitucionalismo Achado na Rua”. Um dos grandes desafios de O Direito Achado na Rua é pensar em um novo Constitucionalismo Brasileiro à luz das experiências obtidas na América Latina, com a finalidade de desenvolver a emancipação e o desenvolvimento dos novos sujeitos de direitos coletivos no Brasil. Quanto à descolonização do saber, o livro ensina que a “ditadura do conhecimento” dificulta outras formas de se obter o conhecimento jurídico e fortalece a hegemonia dogmática do Estado, bem como as tradições corporativas dominantes. Nesse sentido, a proposta é a de repensar uma nova forma de ensino, a fim de poder fazer chegar às categorias sociais esquecidas o conhecimento libertador. Isso pode ser verificado na prática, pela visualização dos resultados (ainda que parciais) de iniciativas tais como as quotas raciais nos cursos de graduação e pós-graduação implementadas nas universidades federais, a exemplo da UnB, com fins de se produzir nos acadêmicos novas formas de pensar o Direito. Quanto ao ensino, à pesquisa e à extensão, O Direito Achado na Rua defende que não há teoria consistente sem prática, mas apenas retórica, bem como a prática sem a teoria, que se torna cegueira pragmática. Os segmentos envolvidos da pesquisa científica não podem ser encarados meramente com sendo apenas seus objetos, mas sim protagonistas. Além disso, O Direito Achado na Rua tem como proposta novas e criativas possibilidades de construção de ensino e pesquisa que possibilitem uma aprendizagem recíproca com outros conhecimentos. Em relação aos desafios e perspectivas, indicam-se as seguintes: a) tensão entre os dois modelos de democracia; b) criminalização dos movimentos sociais; c) democratização da mídia; d) necessidade de desmilitarização da polícia; e) reforma das instituições públicas, mormente o Poder Judiciário; f) a reforma da Educação e das Cidades, todas voltadas para a educação participativa e de inclusão social; g) ressignificação dos espaços públicos e privados; h) incorporação de diferentes linguagens e saberes; e i) integração entre as pautas dos movimentos sociais com respeito às suas diferenças. A obra aponta, em síntese, a necessidade de se modificar a forma de se elaborar e praticar o Direito, conferindo-se mais atenção àquele conhecimento advindo das ruas, dos grupos sociais organizados ou não, o que produziria um Direito horizontal e mais democrático, que diminuiria as desigualdades derivadas do atual e engessado Direito posto hierarquizado. Verifica-se que, embora possa haver críticas, tem-se uma nova maneira de se elaborar o Direito, mais humanizada, com ênfase no social, que tem por objetivo não a manutenção dos privilégios de categorias dominantes, mas atender aos anseios dos menos favorecidos que clamam por seus direitos nas ruas e que, muitas vezes, são esquecidos pelo poder público. Por fim, observa-se que alguns resultados podem ser constatados quanto à viabilidade de O Direito Achado na Rua, o que se vislumbra, mormente, por meio dos projetos realizados pela Universidade de Brasília, demonstrando que é possível repensar a produção e realização do Direito no Brasil o que, além de ser bastante inovador, poderá ser uma forma de integrar os menos favorecidos e esquecidos grupos sociais ao acesso aos direitos e garantias estabelecidos constitucionalmente a todos. REFERÊNCIAS LYRA FILHO, Roberto. Desordem e processo: um posfácio explicativo. In: ARAÚJO, Doreodó Lyra. Desordem e processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Coordenador. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. [1] Mestranda em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Licenciada em Direito na Escola Superior de economia e Gestão em Moçambique-Maputo (ESEG).Defensoria Pública do Distrito Federal2019-12-19info:eu-repo/semantics/articleinfo:eu-repo/semantics/publishedVersionDouble blind peer review; peer-reviewed articleAvaliado pelos paresapplication/pdfhttp://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/article/view/5510.29327/2193997.1.3-10Journal of Brazilian Federal District Public Defensorship; Vol 1 No 3 (2019): Laws, monisms and pluralisms: The Law Found on the Street and the possibilities of emancipating legal practices; 137-142Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal; v. 1 n. 3 (2019): Ordenamentos jurídicos, monismos e pluralismos: O Direito Achado na Rua e as possibilidades de práticas jurídicas emancipadoras; 137-1422674-57552674-5739reponame:Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (Online)instname:Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF)instacron:DPDFporhttp://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/article/view/55/32http://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/article/view/55/167http://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/article/view/55/168Brazil, 2019Brasil, 2019Copyright (c) 2019 Leonor Xavier Nhaca Munguambehttp://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0info:eu-repo/semantics/openAccessMunguambe, Leonor Xavier Nhaca2023-03-23T02:22:17Zoai:ojs2.localhost:article/55Revistahttp://revista.defensoria.df.gov.br/PUBhttp://revista.defensoria.df.gov.br/revista/index.php/revista/oairevista@defensoria.df.gov.br||2674-57552674-5739opendoar:2023-03-23T02:22:17Revista da Defensoria Pública do Distrito Federal (Online) - Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF)false |
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O DIREITO ACHADO NA RUA: UMA CONQUISTA DO POVO The Law found on the streets: a people’s conquest Leonor Xavier Nhaca Munguambe[1] SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, 268 p. A obra objeto desta resenha é o volume 2 da Coleção Direito Vivo, denominada “O Direito Achado na Rua: Concepção e Prática”, elaborada sob a coordenação do professor da Faculdade de Direito e Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade de Brasília (UnB), Dr. José Geraldo de Sousa Junior, ex-reitor da Universidade de Brasília (2008-2012), diretor da Faculdade de Direito e coordenador do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos (NEP), além de membro da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em colaboração com diversos coautores, que dialogam e compartilham os temas que são abordados. De acordo com o coordenador da obra, a concepção de O Direito Achado na Rua originou-se de um movimento de intelectuais denominado Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), que teve como seu principal expoente o professor Roberto Lyra Junior, o qual traçou seus primeiros alicerces. Trata-se, segundo José Geraldo de Sousa Junior (2015, p. 89): de uma concepção de Direito que emerge transformadora dos espaços públicos – a rua – onde se dá a formação de sociabilidades reinventadas que permitem abrir a consciência de novos sujeitos para uma cultura de cidadania e de participação democrática. Em sua primeira parte, o livro aborda o que foi o movimento Nova Escola Jurídica Brasileira (Nair), o qual tinha como objetivo primordial trazer novos conceitos e avanços intelectuais para o Direito, sem menosprezar os conhecimentos já adquiridos com as gerações pretéritas, que se oporia às resistências imobilistas e retrógadas tradicionais, além de expor a necessidade de se superar o colonialismo do saber, à margem da proposta fixista do jusnaturalismo. Os boletins elaborados pela Nair davam luz aos debates jurídicos sobre soluções apontadas para as opressões estatais, além de denunciarem violações de domesticação da população brasileira. Nesse contexto, situa-se a proposta de O Direito Achado na Rua, inicialmente como esboço de um projeto de intervenção jurídica atrelado à práxis social de movimentos apoiados pela Nair, formulado por Lyra Filho em 1986, que teve por objetivo inovar o tradicional ensino de Introdução ao Estudo do Direito e que, após sua morte, teve seu prosseguimento sob a orientação de José Geraldo de Sousa Junior. O livro apresenta a visão do Direito como enunciação da legítima organização social da liberdade, conceito concebido por Lyra Filho que se opunha ao positivismo que, por causa de seu dogmatismo, proíbe a contestação ou, ainda, a proposição de alternativas. Lyra Filho, segundo a obra, busca uma nova definição do Direito dentro do processo histórico-social. Para o professor, o Direito estaria escrito na história e, portanto, sujeito às transformações advindas com o tempo, não se tratando, dessa forma, de um conjunto de leis e costumes imutáveis, tampouco de restrições à liberdade. A legitimidade do Direito postulado por Lyra Filho viria do “aperfeiçoamento dos padrões de convivência”(LYRA FILHO, 1986, p. 307), sendo esse Direito organizado não por determinadas classes ou instituições, mas por toda a sociedade, o que conduziria à construção da liberdade, que é o principal pilar de O Direito Achado na Rua. Sob o ponto de vista epistemológico, O Direito Achado na Rua possui três fundamentos, a saber: a) determinação do espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos; b) definição da natureza jurídica do sujeito e elaboração da sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; e c) enquadramento dos dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecimento de novas categorias jurídicas para que o Direito possa realizar-se como um projeto de legítima organização social da liberdade. Quanto à dimensão orgânica e prática de O Direito Achado na Rua, importa transcrever o seguinte trecho da obra em análise: É desse modo que O Direito Achado na Rua apresenta-se como projeto que assume uma atitude não apenas crítica (epistemológica), mas engajada (orgânica), que compreende a universidade como seu local de origem, mas não exclusivo, constituindo-se enquanto ponto de partida para o desenvolvimento de uma nova práxis no Direito realizada na medida da interação e diálogo com os sujeitos coletivos de direitos, organizados comunitariamente, em sindicatos e movimentos sociais (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 89). O Direito Achado na Rua tem se consolidado como um movimento iniciado na academia universitária, o qual ganhou expressão a partir de seu envolvimento com segmentos organizados da sociedade na luta por seus direitos, o que, segundo Lyra Filho, possibilitou a “construção de uma cultura e concepção que reconhece e compreende o Direito a partir da sua emergência e afirmação no ambiente social, como enunciação de princípios de uma legítima organização social da liberdade”. A segunda parte da obra trata sobre o percurso e o desenvolvimento de O Direito Achado na Rua até chegar à sua fortuna crítica. Quanto ao desenvolvimento teórico, a obra destaca que a década de 1980 foi marcada pela crítica ao Direito estatal dogmático e demasiadamente positivado que era dominante no Brasil. Dentre as novas expressões epistemológicas que surgiram nessa época, destacam-se o Direito Alternativo que, entre outras coisas, questionava a aplicação neutra dos magistrados, e o Direito Insurgente, que tinha por objetivo a superação da ideologia burguesa da igualdade perante a lei. Tais expressões teóricas foram contemporâneas de O Direito Achado na Rua, que tinha por escopo a formação de uma nova ordem jurídica estatal que fosse mais justa e atenta aos direitos humanos, bem como aos segmentos marginalizados da sociedade. Sob a perspectiva do pluralismo político, não sendo a entidade estatal a única fonte do poder político e fonte do direito, O Direito Achado na Rua traz à tona a proposta da análise de novas manifestações normativas não estatais oriundas de movimentos populares organizados. Em relação às suas ideias de sustentação, O Direito Achado na Rua tem por pretensão inserir-se no âmbito da ciência jurídica antidogmática, além de visar à superação da separação entre a teoria e a prática, propondo um olhar para os espaços políticos cujas práticas sociais enunciam direitos, buscando o fim da neutralidade do Direito. Portanto, O Direito Achado na Rua vê o Direito como instrumento de transformação da realidade jurídica vigente, no sentido de atender à demanda de direitos da sociedade e, em especial, dos novos movimentos sociais. Realça o protagonismo da cidadania ativa, em substituição ao sujeito abstrato por novos sujeitos de direito (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 111). Importante destacar que, após mais de 25 anos, O Direito Achado na Rua produziu inúmeros frutos, dos quais podem ser destacados: a) a coleção “Introdução Crítica”, de repercussão internacional na temática da saúde; b) encontra-se presente na graduação e pós-graduação na Faculdade de Direito da UnB, além de influenciar outras instituições; c) por meio do Núcleo de Prática Jurídica da UnB, atuou na luta da comunidade pela fixação do acampamento da Telebrasília em 1990; d) foi referência na Rede de Defesa dos Direitos Humanos em Ceilândia, nos idos de 1997; e) esteve presente na coluna semanal do jornal Tribuna do Brasil (Brasília); além de inúmeros outros projetos. Há de se falar, também, que O Direito Achado na Rua não influenciou apenas estudantes e professores do Brasil, mas também de outros países, tendo, por exemplo, como um de seus mais festejados representantes na Europa, o professor português Boaventura de Sousa Santos. No que tange à produção crítica, O Direito Achado na Rua tem sido considerado por muitos renomados juristas e operadores do Direito como sendo “uma nova crítica do Direito” e “uma nova escola jurídica”, em processo de construção, que formula a construção teórica de “Sujeito Coletivo de Direito” e que nega ter o Estado o monopólio da produção jurídica. De outro lado, O Direito Achado na Rua tem recebido críticas quanto à imprecisão dos limites do pluralismo político, além do que não caberia ao cientista constituir o mundo da ciência em razão desta ser descritiva. Além disso, algumas delas são no sentido de rejeitar o caráter científico de O Direito Achado na Rua, considerando-o apenas como sendo uma construção poética. Em contrapartida, justifica-se a jurisdicidade de O Direito Achado na Rua, sob a fundamentação de que sua inspiração não toma contornos metafísicos, mas tem na vivência da pessoa, sujeito de direito, a efetiva aplicação de seus preceitos teóricos. No que concerne à crítica feita ao sujeito coletivo de direito, entende-se esse sujeito como mera expressão simbólica, pois para que se reconheça o sujeito coletivo como protagonista e destinatário de direitos o Estado exige sua formalização pela via institucional. No entanto, segundo o que defende José Geraldo de Sousa Junior (2015, p. 136) é que “pode haver um campo social que se una com expressões espontâneas de segmentos que não se vinculam a uma organicidade para reivindicar seus direitos” e o diálogo social seria a ferramenta adequada para dar legitimidade a esse sujeito coletivo. Todavia, é bem verdade que construir espaços alternativos à Constituição poderia gerar insegurança jurídica. Em contrapartida, como resposta, aponta-se que até mesmo os direitos expressos na Carta Magna de 1988 podem não ser cumpridos sem que haja protesto nas ruas, a exemplo da manifestação popular havida em 2013, na qual os brasileiros protestaram não apenas pela redução das tarifas e pela violência policial, mas também por uma grande variedade de temas, como os gastos públicos em grandes eventos esportivos e internacionais, além da má qualidade dos serviços públicos e a indignação com a corrupção na política em geral, o que gerou grande repercussão nacional e internacional. A terceira parte do livro aborda as exigências críticas para a pesquisa, a extensão e o ensino em Direito e Direitos Humanos, sob a ótica de O Direito Achado na Rua. Nesse ponto, defende-se a ideia da necessidade de uma reforma no ensino superior, a fim de que haja a formação prática dos acadêmicos para o uso instrumental do Direito como ferramenta transformadora da sociedade. A pesquisa, com aplicação da teoria dialética do Direito, tem por objetivo afastar-se de uma “ontologia furtiva”, anunciando sua “concepção do Direito como legítima organização social da liberdade, evidenciando as limitações do objeto, do sujeito e das análises possíveis” (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 160), como pesquisa-ação. As atividades de extensão, como extensão popular, devem ser abordadas sob o aspecto humanista. A sua importância traduz-se na medida em que possibilitam o desenvolvimento de um trabalho cooperativo e solidário, o que desencadeia o despertar dos estudantes de Direito para uma visão crítica do Direito e da realidade social. O ensino, por sua vez, deve ser permeado pelo contínuo desenvolvimento e construção jurídica, não se tratando, portanto, de algo estático. Logo, um ensino-crítico voltado para a realidade e para a emancipação. Não se pode esquecer que o modelo dogmático e conservador do ensino público do Direito ainda se mantém nos dias de hoje, sendo que seu problema não se limita apenas à forma equivocada de como é ensinado, mas também na errada concepção do Direito que se aprende. O livro irá discorrer, ainda, sobre como a prática jurídica, o ensino crítico e a extensão universitária têm o poder de romper com a cultura técnico-burocrática aproximando, dessa forma, os estudantes da sociedade, bem como são a forma contra-hegemônica de se promover o ensino jurídico. A obra também cita as experiências bem sucedidas da educação jurídico-popular e do assessoramento jurídico para com a sociedade como práticas extensionistas advindas do Direito Achado na Rua. A quarta parte do livro problematiza desafios, tarefas e perspectivas atuais de O Direito Achado na Rua. O pluralismo político tem sua importância para O Direito Achado na Rua, na medida em que tem seus olhares voltados para os subgrupos sociais, de modo a contemplar suas demandas não subsumidas ao legalismo do Direito posto. Para exemplificar, o texto cita algumas experiências havidas nos ordenamentos jurídicos de alguns países da América Latina que adotaram o pluralismo político, tornando-se, destarte, uma espécie de “Constitucionalismo Achado na Rua”. Um dos grandes desafios de O Direito Achado na Rua é pensar em um novo Constitucionalismo Brasileiro à luz das experiências obtidas na América Latina, com a finalidade de desenvolver a emancipação e o desenvolvimento dos novos sujeitos de direitos coletivos no Brasil. Quanto à descolonização do saber, o livro ensina que a “ditadura do conhecimento” dificulta outras formas de se obter o conhecimento jurídico e fortalece a hegemonia dogmática do Estado, bem como as tradições corporativas dominantes. Nesse sentido, a proposta é a de repensar uma nova forma de ensino, a fim de poder fazer chegar às categorias sociais esquecidas o conhecimento libertador. Isso pode ser verificado na prática, pela visualização dos resultados (ainda que parciais) de iniciativas tais como as quotas raciais nos cursos de graduação e pós-graduação implementadas nas universidades federais, a exemplo da UnB, com fins de se produzir nos acadêmicos novas formas de pensar o Direito. Quanto ao ensino, à pesquisa e à extensão, O Direito Achado na Rua defende que não há teoria consistente sem prática, mas apenas retórica, bem como a prática sem a teoria, que se torna cegueira pragmática. Os segmentos envolvidos da pesquisa científica não podem ser encarados meramente com sendo apenas seus objetos, mas sim protagonistas. Além disso, O Direito Achado na Rua tem como proposta novas e criativas possibilidades de construção de ensino e pesquisa que possibilitem uma aprendizagem recíproca com outros conhecimentos. Em relação aos desafios e perspectivas, indicam-se as seguintes: a) tensão entre os dois modelos de democracia; b) criminalização dos movimentos sociais; c) democratização da mídia; d) necessidade de desmilitarização da polícia; e) reforma das instituições públicas, mormente o Poder Judiciário; f) a reforma da Educação e das Cidades, todas voltadas para a educação participativa e de inclusão social; g) ressignificação dos espaços públicos e privados; h) incorporação de diferentes linguagens e saberes; e i) integração entre as pautas dos movimentos sociais com respeito às suas diferenças. A obra aponta, em síntese, a necessidade de se modificar a forma de se elaborar e praticar o Direito, conferindo-se mais atenção àquele conhecimento advindo das ruas, dos grupos sociais organizados ou não, o que produziria um Direito horizontal e mais democrático, que diminuiria as desigualdades derivadas do atual e engessado Direito posto hierarquizado. Verifica-se que, embora possa haver críticas, tem-se uma nova maneira de se elaborar o Direito, mais humanizada, com ênfase no social, que tem por objetivo não a manutenção dos privilégios de categorias dominantes, mas atender aos anseios dos menos favorecidos que clamam por seus direitos nas ruas e que, muitas vezes, são esquecidos pelo poder público. Por fim, observa-se que alguns resultados podem ser constatados quanto à viabilidade de O Direito Achado na Rua, o que se vislumbra, mormente, por meio dos projetos realizados pela Universidade de Brasília, demonstrando que é possível repensar a produção e realização do Direito no Brasil o que, além de ser bastante inovador, poderá ser uma forma de integrar os menos favorecidos e esquecidos grupos sociais ao acesso aos direitos e garantias estabelecidos constitucionalmente a todos. REFERÊNCIAS LYRA FILHO, Roberto. Desordem e processo: um posfácio explicativo. In: ARAÚJO, Doreodó Lyra. Desordem e processo: estudos sobre o direito em homenagem a Roberto Lyra Filho. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Coordenador. O direito achado na rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. [1] Mestranda em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Licenciada em Direito na Escola Superior de economia e Gestão em Moçambique-Maputo (ESEG). |
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