A politização do sangue no primeiro mundo

Detalhes bibliográficos
Autor(a) principal: Santos,Luiz A. de Castro
Data de Publicação: 1993
Outros Autores: Moraes,Claudia, Coelho,Vera Schattan P.
Tipo de documento: Artigo
Idioma: por
Título da fonte: Physis (Online)
Texto Completo: http://old.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73311993000200007
Resumo: Terceiro de uma série dedicada ao estudo da "questão do sangue" sob o ângulo das políticas sociais e do interesse público, o presente artigo aborda alguns temas importantes da literatura internacional. Uma característica perversa do paroquialismo dos debates, no Brasil, entre sanitaristas e hemote-rapeutas, movimentos sociais e aparelhos burocráticos, congressistas e grupos de pressão, é justamente o desconhecimento da literatura internacional. Ao discutir certos temas dessa literatura, procuramos trazer para o debate nacional alguns autores estrangeiros que tratam de aspectos institucionais, organizacionais e técnicos da maior importância para a montagem, operação e correção dos problemas de um sistema hemoterápico. O próprio pioneiris-mo dos trabalhos internacionais é digno de nota. Diferentemente de seus colegas brasileiros, os cientistas sociais europeus e norte-americanos dedicaram-se ao estudo da doação de sangue e da hemoterapia muito antes do aparecimento da Aids. A obra clássica sobre o tema, objeto de especial atenção no presente artigo, é The Gift Relationship, publicada na Inglaterra em 1971. Richard M. Titmuss, seu autor e mestre em estudos de política social na "London School", defende a doação altruísta, não-remunerada, como uma salvaguarda contra a hepatite pós-transfusional e como um instrumento de expansão do comportamento altruísta e dos laços comunitários em qualquer sociedade. O artigo apresenta, igualmente, as críticas ao trabalho de Titmuss que vieram do outro lado do Atlântico, particularmente as de Kenneth Arrow (Harvard) e Harvey Sapolsky (MIT). que defendem, em nome de um ideário neoliberal e de necessidades operacionais consideradas intrínsecas à atividade hemoterápica, a máxima liberdade de opções - inclusive a liberdade de conceder e receber compensação financeira pelo sangue doado e transfundido. Sapolsky, em especial, faz considerações importantes sobre a garantia adicional que painéis de doadores pagos podem representar contra as doenças transfusionais - lembrando não apenas o caso dos EUA como o da Suécia -, por permitirem um cuidadoso acompanhamento médico. O propósito deste artigo, além do exame do quadro internacional que gerou a controvérsia Titmuss versus Arrow e Sapolsky, é tirar lições para o caso brasileiro. De um lado, o Brasil reproduz do cenário norte-americano o exemplo costumeiro da doação e transfusões pagas. Lá, a formação de painéis de doadores pagos e cuidadosamente monitorados vem representando uma defesa adicional contra a contaminação do sangue. Aqui. entretanto, a atividade comercial está, não raro, oculta sob a cortina da atividade filantrópica e, mais freqüentemente, responde pela maior parte dos casos de contaminação do sangue no País. De outro lado, as doações voluntárias que, nos países desenvolvidos, provêm em grande parte das classes média e alta, no Brasil originam-se primordiamente das camadas mais pobres - justamente os grupos de mais baixo padrão nutricional e sanitário, e menos aptos a doar. Além disso, de modo geral a população brasileira doa menos sangue do que, por exemplo, os ingleses. O presente trabalho propõe, assim, uma questão básica: de que modo as discussões sobre os problemas do sangue no Brasil, particularmente a regulamentação da matéria constitucional de 1988, podem se beneficiar das idéias e polêmicas que brotaram em países do Primeiro Mundo? Se o ideário neoliberal de um Sapolsky, por exemplo, não cativar o leitor brasileiro, suas propostas ou programas de ação poderão surpreender pela aplicabilidade. O inverso talvez se dê em relação a Titmuss, cuja força de argumentação reside menos nas propostas de policy (debilitadas pela crítica desferida por Sapolsky) do que em sua generosa defesa de uma ética social redistributiva que, simultaneamente, se beneficie dos laços comunitários e os consolide. Uma política hemoterápica para o Brasil deverá tirar partido dessa profunda tensão entre valores éticos e propostas de ação.
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