Entre retalhos e alinhavos: (des)costurando uma professora de artes
Autor(a) principal: | |
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Data de Publicação: | 2016 |
Tipo de documento: | Dissertação |
Idioma: | por |
Título da fonte: | Repositório Institucional da UFJF |
Texto Completo: | https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/1363 |
Resumo: | Vestiu o maio e o roupão, e em jejum mesmo caminhou até a praia. Estava tão fresco e bom na rua! Onde não passava ninguém ainda, senão ao longe a carroça do leiteiro. Continuou a andar e a olhar, olhar, olhar, vendo. Era um corpo a corpo consigo mesma dessa vez. Escura, machucada, cega — como achar nesse corpo-a-corpo um diamante diminuto mas que fosse feérico, tão feérico como imaginava que deveriam ser os prazeres. Mesmo que não os achasse agora, ela sabia, sua exigência se havia tornado infatigável. Ia perder ou ganhar? Mas continuaria seu corpo-a-corpo com a vida. Nem seria com a sua própria vida, mas com a vida. Alguma coisa se desencadeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar. Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos in-cognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões. Lóri olhava o mar, era o que podia fazer. Ele só lhe era delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra. Deviam ser seis horas da manhã. O cão livre hesitava na praia, o cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar. Seu corpo se consola de sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem. Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal — a alegria é uma fatalidade — já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono secular. E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda — e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto. O caminho lento aumenta sua coragem secreta — e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo — espantada de pé, fertilizada. Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um corpo. E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal que seca, as ondas lhe batem e voltam, lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto. Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de comunicação. Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na suavemente ajudando-a a sair. Não está caminhando sobre as águas — ah nunca faria isso depois que há milênios já haviam andado sobre as águas — mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência à sua saída puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera. E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe — sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano (LISPECTOR, 1998, p. 41,42 e 43). |
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Escura, machucada, cega — como achar nesse corpo-a-corpo um diamante diminuto mas que fosse feérico, tão feérico como imaginava que deveriam ser os prazeres. Mesmo que não os achasse agora, ela sabia, sua exigência se havia tornado infatigável. Ia perder ou ganhar? Mas continuaria seu corpo-a-corpo com a vida. Nem seria com a sua própria vida, mas com a vida. Alguma coisa se desencadeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar. Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos in-cognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões. Lóri olhava o mar, era o que podia fazer. Ele só lhe era delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra. Deviam ser seis horas da manhã. O cão livre hesitava na praia, o cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar. Seu corpo se consola de sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. 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Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um corpo. E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal que seca, as ondas lhe batem e voltam, lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto. Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de comunicação. Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na suavemente ajudando-a a sair. Não está caminhando sobre as águas — ah nunca faria isso depois que há milênios já haviam andado sobre as águas — mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência à sua saída puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera. E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe — sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano (LISPECTOR, 1998, p. 41,42 e 43).Poetry, they say, is a matter of words. And this is just as much true as that pictures are a matter of paint, and frescoes a matter of water and colour-wash. It is such a long way from being the whole truth that it is slightly silly if uttered sententiously. Poetry is a matter of words. Poetry is a stringing together of words into a ripple and jingle and a run of colours. Poetry is an interplay of images. Poetry is the iridescent suggestion of an idea. Poetry is all these things, and still it is something else. Given all these ingredients, you have something very like poetry, something for which we might borrow the old romantic name of poesy. And poesy, like bric-à-brac, will for ever be in fashion. But poetry is still another thing. The essential quality of poetry is that it makes a new effort of attention, and “discovers” a new world within the known world. Man, and the animals, and the flowers, all live within a strange and for ever surging chaos. The chaos which we have got used to we call a cosmos. The unspeakable inner chaos of which we are composed we call consciousness, and mind, and even civilisation. But it is, ultimately, chaos, lit up by visions, or not lit up by visions. Just as the rainbow may or may not light up the storm. And, like the rainbow, the vision perisheth (LAWRENCE, 1998, p. 233).porUniversidade Federal de Juiz de ForaPrograma de Pós-graduação em EducaçãoUFJFBrasilFaculdade de EducaçãoCNPQ::CIENCIAS HUMANAS::EDUCACAOFormaçãoArteEducaçõesFormationArtEducationsEntre retalhos e alinhavos: (des)costurando uma professora de artesinfo:eu-repo/semantics/publishedVersioninfo:eu-repo/semantics/masterThesisinfo:eu-repo/semantics/openAccessreponame:Repositório Institucional da UFJFinstname:Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)instacron:UFJFTEXTraphaelamaltamattos.pdf.txtraphaelamaltamattos.pdf.txtExtracted texttext/plain108960https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/1363/3/raphaelamaltamattos.pdf.txt688604d499c159175663d495e8646352MD53THUMBNAILraphaelamaltamattos.pdf.jpgraphaelamaltamattos.pdf.jpgGenerated Thumbnailimage/jpeg1147https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/1363/4/raphaelamaltamattos.pdf.jpg3bf958c330a875fd5938774ccef53600MD54ORIGINALraphaelamaltamattos.pdfraphaelamaltamattos.pdfapplication/pdf3603789https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/1363/1/raphaelamaltamattos.pdf7abebc613c49041610f2f1626c0d8af7MD51LICENSElicense.txtlicense.txttext/plain; charset=utf-82136https://repositorio.ufjf.br/jspui/bitstream/ufjf/1363/2/license.txtffbb04eaab5e689eb178ff1cf915d0d1MD52ufjf/13632019-11-07 11:40:44.843oai:hermes.cpd.ufjf.br:ufjf/1363TElDRU7Dh0EgREUgRElTVFJJQlVJw4fDg08gTsODTy1FWENMVVNJVkENCg0KQ29tIGEgYXByZXNlbnRhw6fDo28gZGVzdGEgbGljZW7Dp2EsIHZvY8OqIChvIGF1dG9yIChlcykgb3UgbyB0aXR1bGFyIGRvcyBkaXJlaXRvcyBkZSBhdXRvcikgY29uY2VkZSBhbyBSZXBvc2l0w7NyaW8gDQpJbnN0aXR1Y2lvbmFsIGRhIFVuaXZlcnNpZGFkZSBGZWRlcmFsIGRlIEp1aXogZGUgRm9yYSBvIGRpcmVpdG8gbsOjby1leGNsdXNpdm8gZGUgcmVwcm9kdXppciwgIHRyYWR1emlyIChjb25mb3JtZSBkZWZpbmlkbyBhYmFpeG8pLCBlL291IGRpc3RyaWJ1aXIgYSBzdWEgcHVibGljYcOnw6NvIChpbmNsdWluZG8gbyByZXN1bW8pIHBvciB0b2RvIG8gbXVuZG8gbm8gZm9ybWF0byBpbXByZXNzbyBlIGVsZXRyw7RuaWNvIGUgZW0gcXVhbHF1ZXIgbWVpbywgaW5jbHVpbmRvIG9zIGZvcm1hdG9zIMOhdWRpbyBvdSB2w61kZW8uDQoNClZvY8OqIGNvbmNvcmRhIHF1ZSBvIFJlcG9zaXTDs3JpbyBJbnN0aXR1Y2lvbmFsIGRhIFVuaXZlcnNpZGFkZSBGZWRlcmFsIGRlIEp1aXogZGUgRm9yYSBwb2RlLCBzZW0gYWx0ZXJhciBvIGNvbnRlw7pkbywgdHJhbnNwb3IgYSBzdWEgcHVibGljYcOnw6NvIHBhcmEgcXVhbHF1ZXIgbWVpbyBvdSBmb3JtYXRvIHBhcmEgZmlucyBkZSBwcmVzZXJ2YcOnw6NvLiBWb2PDqiB0YW1iw6ltIGNvbmNvcmRhIHF1ZSBvIFJlcG9zaXTDs3JpbyBJbnN0aXR1Y2lvbmFsIGRhIFVuaXZlcnNpZGFkZSBGZWRlcmFsIGRlIEp1aXogZGUgRm9yYSBwb2RlIG1hbnRlciBtYWlzIGRlIHVtYSBjw7NwaWEgZGUgc3VhIHB1YmxpY2HDp8OjbyBwYXJhIGZpbnMgZGUgc2VndXJhbsOnYSwgYmFjay11cCBlIHByZXNlcnZhw6fDo28uIFZvY8OqIGRlY2xhcmEgcXVlIGEgc3VhIHB1YmxpY2HDp8OjbyDDqSBvcmlnaW5hbCBlIHF1ZSB2b2PDqiB0ZW0gbyBwb2RlciBkZSBjb25jZWRlciBvcyBkaXJlaXRvcyBjb250aWRvcyBuZXN0YSBsaWNlbsOnYS4gVm9jw6ogdGFtYsOpbSBkZWNsYXJhIHF1ZSBvIGRlcMOzc2l0byBkYSBzdWEgcHVibGljYcOnw6NvIG7Do28sIHF1ZSBzZWphIGRlIHNldSBjb25oZWNpbWVudG8sIGluZnJpbmdlIGRpcmVpdG9zIGF1dG9yYWlzIGRlIG5pbmd1w6ltLg0KDQpDYXNvIGEgc3VhIHB1YmxpY2HDp8OjbyBjb250ZW5oYSBtYXRlcmlhbCBxdWUgdm9jw6ogbsOjbyBwb3NzdWkgYSB0aXR1bGFyaWRhZGUgZG9zIGRpcmVpdG9zIGF1dG9yYWlzLCB2b2PDqiBkZWNsYXJhIHF1ZSBvYnRldmUgYSBwZXJtaXNzw6NvIGlycmVzdHJpdGEgZG8gZGV0ZW50b3IgZG9zIGRpcmVpdG9zIGF1dG9yYWlzIHBhcmEgY29uY2VkZXIgYW8gUmVwb3NpdMOzcmlvIEluc3RpdHVjaW9uYWwgZGEgVW5pdmVyc2lkYWRlIEZlZGVyYWwgZGUgSnVpeiBkZSBGb3JhIG9zIGRpcmVpdG9zIGFwcmVzZW50YWRvcyBuZXN0YSBsaWNlbsOnYSwgZSBxdWUgZXNzZSBtYXRlcmlhbCBkZSBwcm9wcmllZGFkZSBkZSB0ZXJjZWlyb3MgZXN0w6EgY2xhcmFtZW50ZSBpZGVudGlmaWNhZG8gZSByZWNvbmhlY2lkbyBubyB0ZXh0byBvdSBubyBjb250ZcO6ZG8gZGEgcHVibGljYcOnw6NvIG9yYSBkZXBvc2l0YWRhLg0KDQpDQVNPIEEgUFVCTElDQcOHw4NPIE9SQSBERVBPU0lUQURBIFRFTkhBIFNJRE8gUkVTVUxUQURPIERFIFVNIFBBVFJPQ8ONTklPIE9VIEFQT0lPIERFIFVNQSBBR8OKTkNJQSBERSBGT01FTlRPIE9VIE9VVFJPICBPUkdBTklTTU8sIFZPQ8OKIERFQ0xBUkEgUVVFIFJFU1BFSVRPVSBUT0RPUyBFIFFVQUlTUVVFUiBESVJFSVRPUyBERSBSRVZJU8ODTyBDT01PIFRBTULDiU0gQVMgREVNQUlTIE9CUklHQcOHw5VFUyBFWElHSURBUyBQT1IgQ09OVFJBVE8gT1UgQUNPUkRPLg0KDQpPIFJlcG9zaXTDs3JpbyBJbnN0aXR1Y2lvbmFsIGRhIFVuaXZlcnNpZGFkZSBGZWRlcmFsIGRlIEp1aXogZGUgRm9yYSAgc2UgY29tcHJvbWV0ZSBhIGlkZW50aWZpY2FyIGNsYXJhbWVudGUgbyBzZXUgbm9tZSAocykgb3UgbyhzKSBub21lKHMpIGRvKHMpIGRldGVudG9yKGVzKSBkb3MgZGlyZWl0b3MgYXV0b3JhaXMgZGEgcHVibGljYcOnw6NvLCBlIG7Do28gZmFyw6EgcXVhbHF1ZXIgYWx0ZXJhw6fDo28sIGFsw6ltIGRhcXVlbGFzIGNvbmNlZGlkYXMgcG9yIGVzdGEgbGljZW7Dp2EuRepositório InstitucionalPUBhttps://repositorio.ufjf.br/oai/requestopendoar:2019-11-07T13:40:44Repositório Institucional da UFJF - Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)false |
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Vestiu o maio e o roupão, e em jejum mesmo caminhou até a praia. Estava tão fresco e bom na rua! Onde não passava ninguém ainda, senão ao longe a carroça do leiteiro. Continuou a andar e a olhar, olhar, olhar, vendo. Era um corpo a corpo consigo mesma dessa vez. Escura, machucada, cega — como achar nesse corpo-a-corpo um diamante diminuto mas que fosse feérico, tão feérico como imaginava que deveriam ser os prazeres. Mesmo que não os achasse agora, ela sabia, sua exigência se havia tornado infatigável. Ia perder ou ganhar? Mas continuaria seu corpo-a-corpo com a vida. Nem seria com a sua própria vida, mas com a vida. Alguma coisa se desencadeara nela, enfim. E aí estava ele, o mar. Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não-humanas. E ali estava a mulher, de pé, o mais ininteligível dos seres vivos. Como o ser humano fizera um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornara-se o mais ininteligível dos seres onde circulava sangue. Ela e o mar. Só poderia haver um encontro de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos in-cognoscíveis feita com a confiança com que se entregariam duas compreensões. Lóri olhava o mar, era o que podia fazer. Ele só lhe era delimitado pela linha do horizonte, isto é, pela sua incapacidade humana de ver a curvatura da terra. Deviam ser seis horas da manhã. O cão livre hesitava na praia, o cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar. Seu corpo se consola de sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Lóri está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A coragem de Lóri é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem. Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal — a alegria é uma fatalidade — já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono secular. E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda — e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto. O caminho lento aumenta sua coragem secreta — e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo — espantada de pé, fertilizada. Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um corpo. E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal que seca, as ondas lhe batem e voltam, lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto. Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de comunicação. Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na suavemente ajudando-a a sair. Não está caminhando sobre as águas — ah nunca faria isso depois que há milênios já haviam andado sobre as águas — mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência à sua saída puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera. E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe — sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano (LISPECTOR, 1998, p. 41,42 e 43). |
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